Um jantar do Diabo
subversão
Num jantar só para diabos, uma mentira bastou para mudar tudo. Prepare-se: Lúcifer riu por último… e continua a rir.
No tempo em que os animais falavam, treze diabos costumavam juntar-se uma vez por ano para jantar. Um desses jantares viria a ser o princípio de uma nova era.
Sabe quem são esses diabos?
A lista destas treze nefariantes entidades só pode ser fastidiosa, por isso, e porque não estou entre os personagens, poupar-vos-ei à enumeração.
Mas antes de continuar, pergunto-lhe: acha que a palavra nefariante não existe? Se acha que não, engana-se, pois acabei de lhe dar vida. E não será a única até ao final deste relato.
Como dizia, esse elencar só pode ser uma seca. Mas não acredite que são apenas uns diabinhos.
Não se iluda. Estas criaturas são responsáveis pelos incómodos, desalentos, tristezas e maçaduras com que somos, a miúde, infligidos.
São seres que existem para além do conceito de género e, se tal lhes fosse imposto, talvez tivessem os dois, ou quantos mais géneros queira considerar. Escuso-me de explicar porquê, deixando isso à sua imaginação.
Os menos cruéis fazem-nos esquecer onde estão as chaves de casa, mexem nas nossas cabeças para que tenhamos “brancas”, bloqueiam-nos o pensamento e, quando vasculhamos o pacote das bolachas, damos conta de comemos a última sem termos dado conta que isso ia acontecer.
Mas os diabos mais abundantes são os que se alimentam dos inocentes, que os corrompem e que convertem os justos à inveja e ao vício.
Deliciam-se com infindáveis patifarias com que nos atormentam e, sem darmos conta, vivem ao nosso lado, arrastando os seus corpos lânguidos e gordurosos, coçando as caras cobertas de acne tão forte que o nariz mal se distingue.
Cada um destes malandros tem a sua especialidade, mas há um de quem ninguém sabe bem ao que se dedica e cujo aspecto em nada se distingue dos demais. Tal como os seus irmãos, é vermelho, tem cornos retorcidos e, acima do rabo, sai-lhe uma cauda que termina em ponta de seta.
Quando esses jantares começaram, a memória ainda não tinha nascido, mas desde então estes encontros mantiveram algumas características.
São jantares muito animados, onde cada diabo se gaba incessantemente de todas as patifarias feitas ao longo do ano, e Lúcifer, um cornudo especial, passa a maior parte do tempo calado.
Lúcifer só fala para, traiçoeiramente, elevar algum dos irmãos e, em seguida, o deixar cair na maior humilhação.
Nestes jantares, os diaboa elegem um Rei do Jantar de entre os vários comensais.
Apesar de, em cada jantar, haver uma eleição, por artes e engenho que enraivecem todos os restantes, Lúcifer acaba sempre por ganhar.
Lúcifer não se coíbe de usar, perfidamente, os apetrechos correspondentes ao posto para que foi eleito. Esses acessórios são símbolo de todo o poder que um diabo pode ter perante os outros irmãos, seus súbditos durante o evento:
– a coroa que faz dele quem manda e dispõe,
– o manto que o protege de tudo,
– o cachimbo com o qual faz fumo para incomodar os seus esbirros,
– e o tridente com que pica as nádegas de quem lhe apetecer azucrinar.
Naturalmente, como bom diabo que é, Lúcifer usa todas as prerrogativas do seu estatuto, incomodando e envergonhando, um a um, os outros diabos.
Todos sempre quiseram ser Rei do Jantar e, a cada ano, cresce a raiva coletiva contra Lúcifer, que vai espetando incontáveis vezes os rabos dos convivas.
Ser Rei do Jantar é uma posição muito honrada, mesmo entre seres que nada devem à honra, qualidade pela qual só sentem escárnio.
O jantar sempre obedeceu a poucos rituais, sendo o mais importante o desfile no início do evento, quando cada participante deve fazer uma vénia ao Rei e dizer: “Tu és o rei e eu sou um miserável que mal sirvo para teu súbdito.”
O outro ritual é lavar a louça no final do jantar, o que se tem que fazer num alguidar que se encontra a um canto no chão da cozinha.
Até entre estes seres demoníacos, o comportamento de Lúcifer é desprezível.
Se há pelo menos uma fantasia coletiva entre os diabos, é que Lúcifer caísse da cadeira em cima da mais fétida bosta de cão.
No final do jantar, quando os diabos têm de lavar a loiça, tarefa da qual o Rei está dispensado, Lúcifer limita-se a observar, com ar de desdém, enquanto os outros lavam o prato onde ele comeu alarvemente.
Como é que Lúcifer faz para ser sempre Rei é um segredo bem guardado. Mas o rancor foi-se apoderando dos diabos a cada novo jantar.
Até que, numa das eleições, após Lúcifer vencer como habitualmente, os restantes diabos, fartos da situação, não aguentaram mais e a coisa azedou.
Decidiram fazer uma nova eleição. Mas desta vez, Lúcifer não participaria e teria de lavar a loiça sozinho.
Levantando a voz, Lúcifer vociferou: “Quer dizer: ganhei, vocês vão fazer nova eleição, eu não participo e ainda tenho de lavar a loiça sozinho? Nem pensem! Isto não vai ficar assim. Isso não vai correr bem.”
Os outros diabos viram a cara de ódio de Lúcifer e perceberam que estavam a uma unha negra de haver porcaria da grossa. Lúcifer não era para brincadeiras.
Ainda assim, tal era o desdém, que todos gritaram em coro: “Claro!… Esta situação não pode continuar!!!”
Lúcifer que, mais vermelho do que era, não podia estar, intensificou de tal forma o olhar que havia quem jurasse sentir a terra a tremer.
No entanto, ao contrário do que se poderia esperar, acalmou-se, disfarçando um sorriso dengoso, e disse: “Bom. Já tenho os apetrechos de rei e não será fácil tirá-los de mim. Mas, ainda assim, tenho uma proposta para resolvermos este impasse. Tenho noção de que sou só um e vocês são doze.”
Os restantes diabos, vendo isto como sinal de que Lúcifer tinha percebido que não tinha a vantagem, mostraram-se interessados no que ele tinha a propor.
Lúcifer podia ser esperto, mas doze diabos juntos são muito mais.
Com ar circunspecto, dirigiu-se ao coletivo: “Vamos jogar um jogo. Se eu perder, nunca mais serei o Rei do Jantar e lavarei sempre a loiça de cú para o ar.”
Isto captou todas as atenções, embora não o suficiente para toldar a razão dos presentes. Qual é a marosca desta vez?
Com um raio! Lúcifer queria jogar um jogo contra doze diabos, todos eles mestres em patifarias?
Por muito esperto que fosse, não tinha a menor hipótese de ganhar. Aqui há gato.
E continuou: “Qualquer um de vós, habituado como está a pregar partidas, não terá problema em me enfrentar. Todos juntos, então, estou a correr um grande risco.”
Sim, isso era certo. Os diabos descontrairam-se, riram-se e ouviu-se: “Tu é que quiseste!”, “Vamos lá a isso!”
Os diabos sentiam a vantagem e imaginaram a ratoeira onde Lúcifer se tinha metido.
“Grandes os riscos, grandes as recompensas ou espalhafatosas as derrotas”, disse Lúcifer, para gáudio dos irmãos.
“Pouca conversa e vamos ao que interessa”, diziam, rindo, os doze diabos.
“Irmãos, irei apresentar-vos um problema. E um só problema. Terão de dar uma solução, e uma só. Qualquer coisa que digam valerá como resposta. Terão de acertar: estou ou não a pensar devolver-vos os apetrechos de rei? Considerando que sou um mentiroso.”
Fez-se um silêncio sepulcral conforme cada um dos doze diabos ia percebendo a ratoeira montada. Nesse momento, algo mudou de forma profunda e duradoura.
Desde então, nos jantares só se ouve a voz de Lúcifer, que ri abundantemente, fuma e pica os irmãos.
Os outros diabos nunca desistiram de ir aos jantares… e ainda continuam, silenciosamente, à procura da resposta para Lúcifer, já que a vingança é um prato que se serve frio.
Caro leitor,
Já pensou qual seria a resposta… será possível chegar a alguma conclusão?
Qual seria a sua resposta para este caso?
Nota: A fotografia mostra a peça de cerâmica Ceia dos Diabos, dos irmãos Mistério, propriedade de Alexandra Simões.
David Monteiro