Salvo pelo Chá
evasão
O frio cortava-me os sentidos, mas bastou um gole de chá quente para o mundo voltar a ganhar cor e enredo.
O chá quente devolveu vida às minhas mãos enregeladas pelo vento frio da Rua das Montras.
Bastou sentir o precioso líquido a descer pelo peito para que, em pouco tempo, as palavras que eu lia voltassem a fazer sentido, as frases passassem a ser engolidas a galope, e as páginas se abraçassem, formando capítulos ordeiros. Foi então que voltei a ser sugado para o enredo do romance de onde o frio me havia sequestrado.
Dou por mim a correr desenfreadamente ao lado da personagem principal.
A toda a velocidade, passávamos por entre faias e plátanos que há um par de meses tinham perdido as folhas pontiagudas , formando agora um tapete castanho e escorregadio.
Ao longe, vozes hostis faziam-se ouvir cada vez mais perto, e nós intensificámos a fuga.
Acusando a forte inclinação do terreno, a minha pulsação disparava, e o meu companheiro dava sinais de total exaustão.
Nesse momento de desespero, ao olhar para trás, pensei identificar um dos cães que ajudava os perseguidores. Era o dobermann que já havia implicado comigo noutra situação.
Não ganhavam terreno mas nós iriamos colapsar a todo o momento.
De repente, a fuga é abruptamente interrompida por uma grade metálica que o nosso pânico não nos deixou ver mais cedo. A ferrugem cobria quase toda a superfície do que era o portão de uma das mais famosas quintas da Serra de Sintra.
Pela quantidade de ferrugem, o primeiro pensamento foi que aquela passagem não era aberta há muito tempo. “Estamos lixados”, pensei eu.
Mas, junto à fechadura, marcas de uso intenso renovaram a esperança de que pudéssemos escapar por ali.
No entanto, sem encontrarmos qualquer botão que fizesse ecoar o nosso pânico a alguém que nos pudesse facilitar a passagem, vasculhámos sofregamente as colunas de granito laterais, procurando algum mecanismo com função de campainha ou abertura.
No topo, à direita, uma argola de ferro escurecida pelo tempo pareceu poder ser útil, e não hesitámos em usá-la.
Quando pensava que já agarrava a argola da nossa salvação, percebi que o frio do metal era, afinal, a dor das minhas mãos geladas que voltavam a chamar-me à realidade, a de leitor numa esplanada à procura do seu chá salvador.
Tenha um excelente dia,
David Monteiro