Desistir no Caminho

DESISTIR

O dia de caminhada tinha sido longo, a vontade de desistir, sempre presente, como aquele fiel amigo que não apreciamos muito.

Ao sair do albergue de peregrinos, olhei para a ponte de pedra que, há mais de dois mil anos, vê o Lima correr suavemente por entre os seus arcos.
Ainda sentia algum desconforto das botas, acabadas de calçar, quando um arrepio de frio me percorreu o corpo. Endireitei a mochila e aconcheguei a camisola na zona lombar.
Foi então que um leve odor a carvalho em brasa me transportou para o conforto das doces memórias de fins de tarde à lareira.
À minha esquerda, a vila aquecia-se com o sol de outono e senti uma vontade intensa de atravessar a ponte para a outra margem, mesmo sem me parecer razoável fazê-lo.
Ainda no final do dia anterior, de lá tinha vindo, após um glorioso anoitecer que coroou a longa caminhada desde Tamel.
Ontem, quando ali estive, preguicei numa das esplanadas do Largo de Camões a ver as luzes da ponte que dá nome à vila, Ponte de Lima.
As esplanadas estavam cheias de gente, tanto locais como turistas que não pareciam ter vindo de longe, a julgar pelos seus falares.
Foi agradável ouvir tantas vozes diferentes, cansado como estava dos meus pensamentos, que tinham sido os meus pesados companheiros de jornada.
O dia de caminhada tinha sido longo.
A vontade de desistir esteve sempre presente, como aquele amigo fiel de quem não gostamos muito, mas que está lá nos momentos difíceis. Aquele de quem não temos a certeza se queremos por perto, mas temos medo que nos abandone.
Percebi, então, que não era apenas da caminhada de que queria desistir. Esse mesmo sentimento estendia-se intensamente a outras situações.
Pesava-me o cansaço. Talvez tivesse motivos para isso… ou quisesse convencer-me de que os tinha.
— Ora aqui tem o que pediu. Foi um chá, não foi?
A voz do empregado, alegre e atencioso, carregada de sotaque nortenho, interrompeu a minha melancolia e abriu-me um sorriso.
Com as mãos em concha, agarrei a chávena de chá de limão e soprei, perturbando o vapor que subia ondulante. O meu olhar deslizou entre os muitos arcos da ponte de pedra.
Sem pensar, adicionei açúcar. Um estranho e irresistível pecado para quem não adoça chá nem café.
E mexi. Rodopiei a colher no chá e fiquei a observá-lo enquanto o líquido se tornava mais doce e viscoso.
O suave aroma do citrino e o calor reconfortante que acolhi nas mãos ajudaram-me a elevar-me do corpo.
Foi como se entrasse num estado de hipnose, e as batidas do meu coração passaram de aceleradas e distantes a profundas e serenas.
Porém, nem o chá de limão foi eterno, nem o pôr do sol imprevisível.
Ainda resisti ao frio para poder ver o astro-rei esconder-se ao longe, para lá de onde o rio desliza e onde a vista se perde.
Restou-me imaginar o Lima a chegar a Viana e a dissolver-se no mar salgado.
Entretanto, o presente impôs-se. Os sons do quotidiano trouxeram-me de volta ao dia que começava, e voltei a tomar consciência do peso da mochila.
Fixo o olhar na ponte recordando o dia anterior, sem saber se deveria regressar à esplanada da praça onde tinha sido feliz.
Estava dividido.
Continuar significava virar à direita e caminhar até Rubiães. Isso era manter-me firme nos meus intentos, quando a dúvida tenta levar a melhor.
Nisto, tal como eficaz é o anzol nas trutas do Lima, fui apanhado pelo irresistível cheiro a café e torradas que vinha da confeitaria em frente ao albergue.
Ali, um grupo animado tomava o pequeno-almoço no exterior do estabelecimento.
No dia anterior, sensivelmente a meio caminho entre Tamel e Ponte de Lima, esse grupo caminhava à minha frente, e os sorrisos acolhedores de vários dos seus elementos convidaram-me a juntar-me a eles.
Mas faltou-me o ânimo que a eles sobrava.
Agora, renovavam os sorrisos e tudo em mim procurava por onde fugir.
Com um pé à frente do outro, virei à esquerda e dirigi-me para a ponte. Desistia. Não queria pensar mais no assunto.
Até aqui tinha seguido as setas amarelas que indicam o Caminho de Santiago de Compostela.
Agora, por impulso desse afã de desistir, seguiria as setas azuis que apontam no sentido contrário: o caminho até Fátima.
Esta nova deriva levou-me a cruzar a ponte e a parar na esplanada do dia anterior. Procurei o mesmo lugar mas estava ocupado.
Onde julgava ser-me reservado, estavam agora duas senhoras, alheias às mágoas do meu mundo pesado, absorvidas na sua conversa.
Da mesa vaga que encontrei, tinha quase a mesma vista de antes.
Porém, esta paisagem renovada assentou-me tão indigesta como a repisada ideia de, mais uma vez, ter de começar a vida de novo.
Inquietei-me.
E, ao ver o empregado sorridente a aproximar-se, num assomo de coragem, levantei-me e rumei para o lado de onde há pouco tinha saído.
Não. Não vou desistir.
Voltei a iniciar a caminhada do dia.
Ao voltar a pisar as primeiras pedras da ponte, retomei os meus pensamentos sobre a idade daquele monumento e o facto de ter sido construído pelos romanos.
É impossível não sorrir ao imaginar homens narigudos, de saia e sandálias, como nos livros do Astérix. Se calhar o Obélix andava a caçar javalis, que ainda abundam nas redondezas.
Perdido nestas fantasias, não antecipei um “Buen Camino”.
As palavras, dirigidas por transeuntes, trouxeram-me à Terra e têm-me acompanhado desde que iniciei o Caminho de Santiago.
Foi então que, a meio da ponte, deparei-me com uma grande imagem de Santiago.
O padroeiro dos peregrinos, apresentando-se num enorme busto, penetrou-me com o seu olhar de pedra e também me desejou Bom Caminho.
No dia anterior não tinha reparado nesta estátua.
A segurança das palavras ali gravadas na rocha apanhou-me desprevenido e envolveu-me na sua doçura.
Foi então que compreendi que o meu dia só poderia ter começado com esse retrocesso que me despertou para os recomeços.
Sim… não desistir e recomeçar. Bom caminho.
Talvez os sorrisos que, do grupo de ontem e de hoje, me lançaram tenham sido de “não desistas”, ou talvez fossem apenas de “estamos aqui”.
Acelero o passo.
Alcançarei o grupo e anseio pelo renovado sorriso convidativo.

David Monteiro

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