Vida de borboleta
esperança
Filhas dessa temperatura rebelde, eram também uma mole de borboletas que ao longe voavam vindas não sei de onde.
Após uma semana de dias quentes no final de março, fui surpreendido por um par de desconfortantes rajadas de vento que me arrepiaram.
Esses bafos passaram por mim e seguiram caminho em voo rasante pelo mar verde de trigo onde havia flores silvestres que antes disso jaziam tranquilas na planície ribatejana.
Nessa seara primaveril, sobressaía o pintalgado escarlate das papoilas espontâneas e, nas poucas elevações do terreno, o odor doce e previsível das estevas era o resultado desse tal calor fora de época.
Filhas dessa temperatura rebelde, eram também uma mole de borboletas que ao longe voavam vindas não sei de onde.
De entre tantas criaturas aladas, uma aproximou-se de mim.
Veio desajeitadamente cavalgando uma onda de vento.
Se trôpego era o seu voar, o seu pousar não podia ser mais delicado e elegante. Não fosse o vento que ora me aquecia e outras tantas vezes me gelava, e nem as florzinhas do campo dariam conta que a borboleta ali tinha aterrado.
Sem pressa, as suas antenas inspecionavam os estames e as suas patas, mais finas que o mais fino dos arames, caminhavam sem peso em cima do bouquet multicolor.
Deliciei-me a acompanhar o primeiro dia em que esta borboleta viu a luz do dia, nesse dia de maior calor que ajudou a secar as asas das (milhares) de outras borboletas que antes encheram o campo.
Como deve ter sido maravilhoso voar com tantas irmãs mesmo não lhes conhecendo os nomes, mas com a certeza da sua amizade e propósito de vida.
É certo que nascer conhecendo o seu propósito terá tanto de reconfortante como de aterrador. Porém, sendo esse propósito o de andar de flor em flor polinizando e, assim, dando vida a tantas outras flores, até o curto tempo de vida da borboleta é elevado a uma dimensão poética.
Mais uma rajada de vento e acordo do estado de quase hipnose em que a tranquilidade da cena me havia mergulhado. Percebo que em menos de nada havia passado meia tarde.
Vi então que a borboleta por ali seguia, continuando a pousar aqui e ali, sem que muito mais tivesse feito.
Intrigou-me a sua abstração do tempo quando, ao mesmo tempo, consciencializei-me que partilhei uma das poucas tardes que uma borboleta tem para viver.
E o que fez ela durante esse tempo de uma vida tão efémera? Gastou-o saltitando entre flores, inspecionando cada pétala e pouco mais.
Estará a borboleta consciente do seu curto tempo de vida?
Ou será que se demora em cada flor especialmente porque tem consciência dessa vida fugaz?
Penso que durante a sua curta vida, a borboleta elegeu fazer só o essencial por isso, pousar em flores é isso mesmo: essencial.
Só o belo dá sentido à vida e as flores têm disso aos montes.
Se mais tempo não houver, pelo menos o desígnio da contemplação do belo a borboleta terá cumprido.
Tal como a borboleta, concentrem-se no essecial.
David Monteiro