A miúda que corria

FELICIDADE

Eu descia a College Green Street, em Bristol, quando fui aprisionado pela visão de uma criança que, bruscamente, me libertou do meu passarinhar de turista.

Finais de novembro. Estava frio.
Eu descia a College Green Street, em Bristol, quando fui aprisionado pela visão de uma criança que, bruscamente, me libertou do meu passarinhar de turista.
Na miúda vi, claramente, uma força incontrolável que não lhe deixava outra opção senão correr.
Pelo caminho, acabei por saber que ela tem de estar quieta durante as aulas, e está, mas não gosta.
Todos os dias, a menina espera ansiosamente pela hora da saída da escola, às 17h30, quando a mãe a espera pontualmente e a deixa correr até casa. É o seu momento de glória.
Já há algum tempo, Emily, a mãe, desistiu de a acompanhar Lilian a pé. Ainda tentou trazer os ténis para correr ao lado dela, mas o que parecia simples não foi.
Hoje em dia, ir com esse tipo de calçado para o trabalho está fora de questão. No escritório de advogados onde trabalha, não gostaram nada da primeira experiência.
Por outro lado, levar os ténis num saco também não se mostrou uma opção viável.
Porquê? Já experimentaram correr com sacos na mão atrás de uma criança?
Qualquer mãe já fez essa experiência e, se não as vemos por aí na rua a correr dessa maneira, por algum motivo será.
Posto isto, ir de bicicleta pareceu-lhe o mais acertado, mesmo que, para isso, tenha tido de aprender a pedalar sem dar cabo do tacão dos sapatos, o que por si só já foi um desafio.
Não foi fácil, mas como não havia forma de convencer a Lilian a ir mais devagar, teimosia herdada do pai, pedalar foi a solução que se impôs.
A miúda quer correr? Que corra.
— “É hiperativa” — alguém disse à mãe, quando pararam no semáforo.
— “Hiperativa uma ova. Gosta de correr!” — respondeu-lhe Emily, cansada de ouvir opiniões vindas de pessoas que não conheciam a filha, mas que pareciam não ter o bom senso de guardar para si os seus palpites infundados.
Felizmente, no trajeto para casa não há muitas ruas com trânsito de carros.
A Anchor Road, onde estavam no momento, é a exceção, e vejo que Lilian sabe que tem de esperar pela luz do homenzinho verde, que aparece com o seu apito intermitente, para então poder atravessar a rua.
Quando espreitou para a direita, a sua cabecinha sobressaiu de entre os muitos adultos que esperavam mecanicamente o momento de atravessar.
Homenzinho verde… apito intermitente… mais uma espreitadela, não vá vir algum despistado… ninguém… pimba! E lá vai ela a correr outra vez.
O duo mãe e filha passou em frente aos Cascade Steps. Lilian não conseguia tirar os olhos da instalação de luzes que fazia jogos de cor num incessante galgar de degraus — o que levou a um automático aviso da mãe, prevenida por situações anteriores:
— “Olha para onde vais!”
Lilian escapou-se àquele que não seria o primeiro trambolhão.
— “Broad Quay, Broad Quay…”
Oiço o aviso de Emily, mas não faço a mais pequena ideia do que tal possa ser.
No entanto, o comando atinge em cheio o seu pequeno destinatário, que ajusta o sentido da corrida, aponta a agulha para uma ciclovia ali perto e zás — afastam-se rapidamente.
Não sei o que eu poderia estar a pensar, mas foi tudo muito repentino.
Parecia que este par singular não me deixaria outra solução para saber para onde iam, senão terminar de fotografar e levantar voo, movido pela ânsia de acompanhar a história.
A realidade e o pragmatismo da força gravitacional, que me prendia ao chão com os meus 95 kg, limitaram-me a imitar esta sábia e indulgente pequena criatura — e também comecei a correr.
Maldita indecisão de uns segundos que me fez perder de vista o par insólito.
Tinham desaparecido junto ao rio, sob a proteção da falta de iluminação, e quase pensei em desistir da minha perseguição.
À minha frente, mas algo distante, uma rua iluminada prendeu-me o olhar. Era a estrada que dava acesso à Prince Bridge e que passa para a outra margem do rio Avon.
Entre mim e essa estrada, havia o espaço de rio  em “U”, formado pelo contorno de uma doca, o que tornava a ponte inacessível em tempo útil. Foi o remate final para que eu me desse quase por vencido.
Mas só quase.
Foi então que, na tal rua iluminada, no meio do amontoado de gente que passava de um lado para o outro, consegui ver um pequeno barrete cor-de-laranja que corria por entre as pernas dos transeuntes e a minha esperança voltou a brilhar.
Lilian, de braços abertos, como se fosse uma avioneta, corria, voava, dando fortes guinadas de asa e evitando obstáculos gigantes que, tal como ela e a mãe, talvez também regressassem a casa após um dia de trabalho.
O som da cidade misturava-se com os estalidos aquáticos do rio, e a minha imaginação preencheu o som que faltava.
Consegui ouvir um “vvruuummmmm” saído de uns lábios de criança, projetando gafanhotos à sua volta.
Atrás do pequeno avião imaginário, e à distância de apenas um ou dois segundos, como uma sombra protetora, vi a mãe ciclista que, com a sua cria, desapareceu do meu olhar confundindo-se de vez com a população.
Só o posso continuar a imaginar o fim do dia dessa família.
Porque, o fim desse meu dia, já estava mais quente pelo carinho da cena que, mesmo não sendo minha, partilhei.

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